terça-feira, 2 de abril de 2013

Miserere

Compadecei-vos de mim, ó Deus, por teu amor!
Apaga as minhas transgressões, por tua grande misericórdia!
Lava-me inteiro da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado!
Ó Deus, cria em mim um coração puro, Renova um espírito firme no meu peito;
Não me rejeites para longe da tua face
Não retires de mim o teu Santo Espírito!
(Sl 51/50,3-4.12-13)



Eu sou um centurião romano. Estive ao pé da cruz do Nazareno por cerca de 6 horas ontem. Meu nome? Não, não direi. Tenho medo, pois fui eu quem, junto com alguns soldados da minha coorte, proclamou: “Este homem é, verdadeiramente, o Filho de Deus”. Não sei como o procurador Pilatos reagirá quando souber disso.

Não sou um homem dado a essas coisas de religião. Tenho cem homens à minha disposição. Se disser “matem”, eles matam sem hesitar; se disser “ataquem”, eles atacam; se gritar “recuem”, eles recuam. Cheguei nesta região junto com Pôncio Pilatos, e estou sob o seu comando deste então. Mas o que eu vi ontem mexeu com as minhas entranhas.

Eu estava perto do Nazareno e acompanhei o seu interrogatório na manhã de ontem no pretório. O procurador ainda tentou evitar o massacre e chegou a ter medo de derramar o sangue do Nazareno - a quem a sua mulher havia chamado de “justo!”-, mas deixou- se vencer pelos gritos da multidão inflamada e pela intimidação política quando gritaram: “... Se o soltas, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei, opõe-se a César!” Pilatos ainda perguntou: “Crucificarei o vosso rei?” Mas os chefes dos sacerdotes responderam: “Não temos outro rei a não ser César!”

Daí em diante, o que se seguiu foi sangue e horror. Continuei presenciando tudo o que ocorreu com o Nazareno, de perto. A flagelação ensandecida, a coroação com os espinhos, o escárnio, as cuspidas na cara, as bofetadas, a subida para o Gólgota, as quedas sucessivas sob o peso do madeiro, a crucificação, o deboche, algumas pessoas chorando e gritando, a terra tremendo, a escuridão súbita que nos envolveu por cerca de três horas. Ouvi também que Ele rezava para o seu Deus, que intercedia por aqueles que o crucificavam, que pronunciava algumas palavras.

Sou um centurião romano. Homem habituado a ver morte e a matar. Mas, ali, houve um momento em que o meu coração se derreteu como cera. Foi quando Ele fixou os olhos em mim, do alto da cruz, com um leve manejo da sua cabeça. Toda a minha vida como centurião perdeu o sentido. Não consegui devolver o olhar Dele. Abaixei os olhos e encarei o chão.

Quando Ele morreu, um dos meus soldados traspassou o seu lado para atingir o seu coração. (Queria certificar-se da morte). Eis que jorrou sangue e água. Um dos seus discípulos - aquele que estava ao lado de sua mãe -, espantou-se.

Por algum impulso sobrenatural, percebi que aquela não era apenas mais uma das dezenas de mortes que eu presenciara. Aquela morte iria mudar as pessoas a começar por mim. Senti vergonha e acho que entendi o que os seus seguidores chamavam de pecado. O que eles denominavam de “sheol”, a morada dos mortos, não deveria ser o lugar para onde o Nazareno, ou melhor, o Filho do Homem iria ficar, mas sim por onde Ele apenas passaria. Sim, ele apenas passaria por ali.

Realmente eu estava - e estou! - confuso. Gostaria de encontrar os seus discípulos, falar com eles, fazer perguntas. Talvez assim eu encontrasse os argumentos que ainda me faltam para permanecer um centurião de Roma.

Mas as coisas começam a girar, e a ganhar sentido na minha cabeça. Lembro-me de um sábado - já se vão alguns anos -, em que alguns judeus saíam de uma sinagoga discutindo sobre um profeta chamado Isaías. Era um trecho das escrituras deles que dizia:...”ainda que vossos pecados sejam com escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim tornar-se-ão brancos como a lã... eis o que a boca do Senhor falou”.

O Deus, pai do crucificado, falou de perdão. Abaixei a cabeça e murmurei: Miserere! Miserere! Miserere!